domingo, 6 de março de 2011

Privilégio


Certo dia em que passava pelos portões da UFMG para mais um dia de estudo, me dei conta da grande fronteira que atravessava. Para trás ficara todo o emaranhado caótico da cidade e seu zumbido cinzento. Ali só havia a calma verde das árvores, num contínuo que se perdia aos olhos. Obviamente havia também alunos apressados, carros insistindo em seu ronco invasivo e funcionários que buscavam se despir do sono. Nesse dia porém, escolhi ver o verde. Escolhi ouvir o silêncio se despertando no canto de pássaros inusitados. Escolhi transpor o tempo e me lembrar de um mundo que pouco conheci, mas de que sempre ouvi falar.
Me mudei para Belo Horizonte ainda criança. Me lembro dos passeios com minha mãe pela cidade. Pegar ônibus, ir ao centro enfrentar aquele mundo de gente, entrar e sair de lojas em busca de um preço mais simpático. Olhar fixo no chão e nas pernas que se entrecruzavam, me desviava e, ao mesmo tempo, acompanhava o puxão firme no braço, conduzido pela marcha frenética de minha mãe. E então ouvia um grito. Assustada, procurava o motivo que a fizera parar. Assalto, esbarrão, pisada no pé talvez. Mas todas as vezes, e não foram poucas, percebia que seu olhar se havia desviado para outra direção. E em seguida ouvia: “Que maravilha está essa Castanheira!” ou “Aquela é uma Quaresmeira, minha filha, símbolo da cidade”, e outras vezes “Olha que vontade de viver, a das plantas. As raízes quebram a calçada com sua força!” Fatos eram sempre acompanhados de nomes, que foram aos poucos acrescentados à minha lista: Flamboyant, Pata de Vaca, Acácia Japonesa, Buganvília, Orquídea, Violeta, Lírio, Boca-de-Lobo, Amor-Perfeito, Hortência...
            Antes da mudança para a capital, a casa de minha vó materna era o próprio paraíso. Naquele lugar, onde eu e meus primos explorávamos cada centímetro do extenso terreno em nossas brincadeiras de aventura, minha mãe foi criada. Lá ouvimos várias histórias de moleques pulando os muros para pegar frutas nas diversas árvores do quintal. De como elas muitas vezes mataram a fome dos doze irmãos. De linhas e flores que se transformavam em coroas e colares. Histórias de enxertos, adubos e cuidados da terra, paixão de meu avô por suas plantinhas. E de sua coleção de madeiras mantida no porão, colhidas durante suas andanças pela cidade. Muitas vezes, furtivamente acabavam no fogão à lenha, gente demais pra alimentar. Descoberto o delito, inflamava-se meu avô. Rapidamente retirava seu tesouro do fogo, o apagando. “Isso é Pinho de Riga! Isso é Pinho de Riga!”
            Hoje em dia é comum, quando estou com meus amigos, parar e dizer: “Como estão lindos esses Brincos de Princesa” e receber em troca olhos interrogativos. Se espantam pelos nomes que guardo. À sombra de uma árvore que se encontra em frente à faculdade, onde nos assentamos diariamente, folhas que caem nos cabelos ou formigas que transitam por nossas pernas se transformam em queixas . Num desses dias vi uma pequena Ameixeira que se encontra no mesmo local ser violentamente sacudida. Um homem buscava tirar proveito de seus frutos. E brutamente a importunava, derrubando vários deles no chão. Escolheu alguns, ignorou o resto. Desaprendemos a olhar.
            No entanto, entrei no campus aquele dia e decidi não ver os prédios concretos e simétricos que se espalham em meio às copas. Prédios cheios de livros, livros cheios de nomes. Nomes dos quais fiz questão de me esquecer. Me ceguei para a o vagar acadêmico dos passantes, míopes, cheios da sede ortodoxa por termos cunhados em laboratórios, embebidos de importância asséptica.
Entrei no campus e me deixei envolver pela névoa que paira sobre a reserva ecológica bem cedinho de manhã, banhada pelos raios que se espreguiçam sobre aquele friozinho úmido. Reparei no passarinho incomum de cauda comprida, camuflado em meio aos galhos. Notei os gatinhos se enroscando pelos gramados, tranqüilos e livres, donos daquele território soberano. Deixei o rosa dos Ipês me inundarem de beleza. Acompanhei a leveza do Salgueiro a sombrear um banco de jardim. Lembrei-me dos nomes tão significativos que popularam minha pequena enciclopédia verde. E senti o real privilégio que há em adentrar aqueles portões diariamente.  

25/09/2007

*Texto publicado no projeto "A Tela e o Texto" da FALE/UFMG em 2010, que circula nos ônibus de BH.
            

4 comentários:

  1. Que saudade das brincadeiras e aventuras na casa da vovó Nilta! A gente "desbravando" o quintal como se estivesse na própria Amazonia... eu e Leandro lutando para conseguir pegar a goiaba mais bonita do pé..e também a mais alta... O fogão a lenha... com o cheirinho da madeira queimando... o Macarrão da vovó! Os pastéis, suspiros e o bolinho de chuva! Nossa infância foi privilegiada!

    ResponderExcluir
  2. De: Frederico A. Ventura Pataro
    (recebido por email)
    Lívia, bom dia.

    Não a conheço mas, quero parabeniza-la pelo texto que fez para o programa "Leitura para todos". Vendi meu carro há 2 meses, estou horrorizado em depender de ônibus, mas, felizmente, tive a grata surpresa de andar em um ônibus que tinha seu texto na poltrona.
    Resido em BH desde 2007 e sou do interior, mais precisamente de uma cidade chamada Urucânia.
    Lendo o que você escreveu vi minha infância novamente e o verde de Viçosa (local onde me graduei). Sinto falta de tudo isso, principalmente do "verde" que deixei pra trás...

    Enfim, parabéns pelo texto.

    ResponderExcluir
  3. De: Letícia Martins
    (recebido por email)

    Olá, Lívia!

    Meu nome é Letícia. Eu sou estudante de Medicina Veterinária da UFMG e encontrei seu e-mail num ônibus da linha 5102 quando estava indo para a aula. Eu li seu texto e fiquei emocionada. Não tinha parado para observar a beleza da UFMG. Nunca tinha me atentado para a sorte de poder estudar lá e de estar lá todos os dias. As árvores, os pássaros, o céu... Você abriu meus olhos para algo que estava bem na minha frente e que eu nunca vi. Te parabenizo pelo texto e agradeço pela oportunidade de poder compartilhá-lo com você. Obrigada!

    Letícia

    ResponderExcluir
  4. Minha querida filha, Lívia,
    como pais, fazemos tudo para ver os filhos felizes e nem sempre conseguimos mas os filhos captam o mais profundo do nosso ser e sou essa pessoa amante da Natureza, captei dos meus pais também. Fico feliz de ter passado essa bela herança. Infelizmente, como meus pais sei que deixei muitas outras coisas a desejar porque só podemos dar o que temos e aprendemos. Para sobreviver o que sempre fiz foi compensar: frustrações com ações que me davam prazer e uma delas é plantar e estar sempre em contato com a Natureza. Sou muito Scarlet Ohara, no inesquecível filme E O VENTO LEVOU - da terra tiro minhas forças e assim vou me reciclando. beijos

    ResponderExcluir